Visão

O conceito de autorretrato assume total relevância na formulação teórica deste projeto. Tem por base o “pacto autobiográfico” proposto por Philippe Lejeune em 1975, o qual pressupõe a simultânea identidade entre autor, narrador e pessoa de quem se fala. Reconhecendo a não
linearidade do processo, bem como a possível incapacidade de verificação dos factos mencionados por quem recebe a mensagem transmitida, consideramos que a definição tem como principal vantagem a desvinculação entre a autobiografia e o real ou verdadeiro.

A motivação da nossa pesquisa não se prende, portanto, com a verificação de factos aduzidos nas obras, mas antes com a própria subjetividade e forma poéticas do conteúdo fílmico. Interessa, pois, estudar modos de aparecer através do material autobiográfico e da situação catártica das cineastas a estudar. Analisar o que dizem do seu Eu enquanto fruto de um passado familiar não elegido, com marcas no presente: no quotidiano dos dias, no comportamento e nas decisões assumidas. A experiência de si formulada por mulheres é indissociável de um pacto narrativo que resulta na apresentação de um “eu” que reivindica a visibilidade, a legitimidade, em suma, a força de uma presença.

O estudo, que abrange filmes realizados por mulheres em Portugal (como Leonor Teles, Margarida Leitão ou Catarina Mourão) e no Brasil (Petra Costa e Maria Clara Escobar, entre outras), parte então da ideia de que as mulheres-cineastas têm enfrentado dificuldades para realizar ficção, em Portugal e no mundo, em contraponto com um número mais representativo de realizadoras de documentário, em Portugal, nos países de língua portuguesa, e no mundo.

A justificação do foco tem em conta esses reconhecidos obstáculos, que contrastam com a ousadia de filmar e de expor: não apenas histórias, mas as suas próprias histórias, as das suas famílias e as dos seus papéis numa narrativa que é tão íntima e pessoal que se torna universal. A autorrepresentação e o espelho inscrevem-se muitas vezes como contrapoder num espaço social, familiar e público. De acordo com a terminologia criada por Claire Johnston (1973), pode mesmo tratar-se de um “contra-cinema”, dada a escassez de possibilidades que torna estes corpos e enredos disruptivos e minoritários num circuito mediático, nacional e internacional. Arriscar o íntimo através da realização de um documentário, e, mediante o cinema, conferir valor estético e ético à exposição de si, passa por ultrapassar uma ambiguidade. Trabalhar cinematograficamente um labirinto de experiências pessoais vividas por mulheres, é, pois, contribuir para que estas sejam visíveis e audíveis. Implica, de certo modo, partir ao encontro de universos desconhecidos e fixar novas formas de compreensão e entendimento.

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